Esta é a história de como um moleque que não era nada brilhante transformou-se em um matemático, fez seis pós-doutorados e dirigiu, em São Carlos, um dos mais renomados institutos de ciências exatas do país
O ritmo que Plácido Táboas imprime à voz faz jus à origem de seu nome. Do latim, plácido quer dizer calmo, tranquilo, sossegado. Mas essa serenidade que emana das palavras do professor Plácido não condiz com as histórias das lutas por ele travadas no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos.
Plácido é, antes de tudo, um forte. Diferentemente do sertanejo descrito por Euclides da Cunha em “Os Sertões”, os traços desse professor não são herança dos mestiços do litoral brasileiro, vieram do além-mar, mais especificamente da Espanha. Definindo-se como “um briguento, um questionador”, Plácido não se arrepende de ser assim: “A gente é feito de certo barro e não tem como mudar”.
Confira, na entrevista a seguir, a trajetória desse menino de Pirassununga que abandonou o cursinho do Centro Acadêmico Armando de Salles Oliveira (CAASO), onde estudava para prestar o vestibular de engenharia, porque queria ser professor de matemática.
O que o levou à Licenciatura em Matemática e qual foi o estímulo para seguir esse caminho?
Eu não era um bom aluno. Era um moleque de interior, pensava em jogar bola, fazer estripulias, brincar, mas tinha um pendor para ciências exatas. Em casa, não era considerado nenhum menino precoce ou genial. Os mais inteligentes eram minha irmã, Maria Carmem, e meu irmão Celso. Ela era dez anos mais velha do que eu; já o Celso, oito anos. Havia também o Henrique, seis anos mais velho.
Maria Carmem não fez faculdade, terminou o ensino médio, estudou matemática com professores particulares e passou em um concurso para ser professora em escola pública. Eu vi isso e me entusiasmei, tinha gosto pela matemática também e achava um bom caminho me tornar professor de matemática. Na época, era uma profissão valorizada, não fazia ninguém ficar rico, mas era digno e tinha muita respeitabilidade.
Já o Celso era um rapaz brilhante. Ele também terminou o ensino médio e passou no vestibular para engenharia sem fazer cursinho, aqui na Escola de Engenharia de São Carlos (EESC). No entanto, ele arrumou uma namorada, começou a querer casar e abandonou a engenharia. Acabou prestando um concurso tal como minha irmã e foi ser professor de matemática em Leme.
E seus pais, em que trabalhavam?
Meu pai era comerciante, um imigrante que veio sozinho da Espanha para o Brasil com 18 anos. Ele disse que estava indo para a Argentina e parou aqui para visitar um irmão. Acabou ficando. Arrumou um emprego em São Paulo, em uma revenda da Ford. Como o irmão morava em Pirassununga, acho que ele conheceu minha mãe lá e passou a ser operário no interior. Depois, deixou a fábrica e montou um comércio de pães e doces – uma espécie de confeitaria. Em paralelo, abriu uma relojoaria e criou uma seção de ótica. Por fim, vendeu o outro comércio e ficou só com esse último.
Minha mãe era dona de casa, ajudava nos negócios e tinha formação de corte e costura. Ela chegou a ter uma escola de corte e costura. Com a evolução do negócio do meu pai, abandonou tudo e começou a trabalhar mais no comércio.
Eles não tinham férias. Trabalhavam todo final de semana, só descansavam no domingo à tarde. Era dura a vida.
O jovem Plácido ajudava nos negócios da família?
Eu dava uma mãozinha, tinha algumas tarefas. Uma delas era limpar os vidros da loja. Também ajudava a atender o balcão, mas não tinha um horário fixo de trabalho. Lembro que certa vez meu pai abriu uma sorveteria, só que a tecnologia de fazer sorvete não era tão evoluída. Minha mãe levantava-se às 4 horas da manhã para fazer as caldas e, depois, tinha de bater o sorvete. Eu ajudava nisso.
Com o abandono do cursinho do CAASO, atrasou um ano sua entrada na faculdade?
Na verdade, contando esse ano do cursinho, foram três anos no total. Meus pais descuidaram e eu entrei na escola quando estava para fazer oito anos. Isso não foi culpa minha. Depois, eu perdi mais um ano no primeiro colegial.
Nesse tempo, havia algumas disciplinas em que me dedicava com afinco, com muito amor. Eu me entusiasmei com a literatura francesa e os poetas românticos franceses. Fazia traduções literárias das poesias sozinho. O professor de francês gostava muito das traduções. Eu não pegava o dicionário e fazia a correspondência das palavras. Lia, procurava entender o que o poeta queria dizer e, então, escrevia em português uma frase que traduzia aquela ideia.
Eu gostava também de português, sempre tive facilidade para redação, e de desenho geométrico e matemática. Só estudava essas coisas. Tive notas ótimas nessas disciplinas, porém, nas outras fui reprovado.
Qual foi a reação de seus pais?
Meu pai me ameaçou não me matricular mais e eu me assustei. Ele falou que ia procurar um emprego para mim. Quando chegou o momento de fazer a matrícula, o pessoal lá em casa não foi cuidar disso. Fui escondido, fiz a matrícula e eles me deixaram estudar. Então, eu me tornei um aluno razoável. Bem, se eu tivesse entrado na época certa na escola, não sido tão relapso em algumas disciplinas no primeiro colegial e não tivesse perdido esse ano do cursinho, eu teria ganhado três anos da minha vida.
Mas será que, de alguma forma, não foram importantes esses anos “perdidos”?
Acho que sim. Tinha um professor que eu admirava muito, o Mario Tourasse Teixeira, da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Rio Claro, onde me graduei em 1965. Ele me influenciou muito, não só na formação matemática, mas humanística também. Era uma pessoa fantástica. Uma vez, conversando com ele, eu disse: gostaria de voltar atrás na minha vida com a experiência que tenho agora. Eu ia estudar até latim! Não sei se meu caminho seria fazer matemática, porque eu gostava de outras coisas também, mas teria uma formação melhor. Ele falou: será que você não está enganado? Esse período que você acha que perdeu vadiando, não foi um tempo em que aprendeu muito e passou a conhecer coisas que a gente não aprende na escola? Respondi: pode ser, muitas coisas a gente aprende vivendo...
Houve outros professores relevantes na sua trajetória?
Lá de Rio Claro, uma pessoa igualmente importante é o professor Nelson Onuchic, que foi meu orientador de doutorado. Ele foi um exemplo, muito estimulante como orientador, como professor. Foi decisivo ter feito iniciação científica com ele quando eu era aluno da graduação.
Outro professor importante foi um americano, Jack Hale, com quem fiz meu primeiro pós-doutorado nos Estados Unidos. Ele faleceu há cerca de 4 anos e era uma pessoa especial, um matemático fora de série. Mas eu o conheci antes de ir para lá, o professor Nelson o trouxe para São Carlos. Aliás, o Nelson teve um papel relevante na atração de pessoas importantes para cá.
Em seu discurso de posse como diretor do ICMC, em 2002, o senhor afirma que “a principal função do diretor é criar condições, ser um facilitador das manifestações das lideranças, criando condições para que elas possam se expressar da melhor maneira”. Há algum exemplo desse tipo de atitude durante sua administração?
Fiz um grande esforço para que fosse criado o Departamento de Matemática Aplicada e Estatística (SME). Cosequentemente, foi criado o Departamento de Sistemas de Computação. Esse era um desejo de alguns grupos e eu achava justo que os estatísticos tivessem mais liberdade para se desenvolverem. Antes, o Instituto tinha dois departamentos: Matemática e Computação. Todas as discussões eram polarizadas, o departamento que tinha a maioria dos votos é que definia as decisões. Então, pensei: se nós criarmos um terceiro departamento, vai melhorar, ninguém terá maioria, teremos que negociar. Se isso tivesse acontecido antes, provavelmente, o nome do Instituto seria Instituto de Ciências Matemáticas de São Carlos e não ICMC.
De fato, aconteceu uma grande discussão antes da mudança do nome do Instituto em 1998. O senhor acha que essa alteração não deveria ter ocorrido?
Não é que não deveria ter acontecido. Eu era contra a mudança do nome. Não acho isso importante, não mudou a história do Instituto. Justamente por isso não deveria mudar. É um nome inteligente, não privilegia a matemática. É um Instituto de Ciências Matemáticas, o que inclui computação, estatística, etc. Por que mudar? Eu era a favor de manter o nome porque nós temos uma dificuldade em manter tradições e elas são importantes.
Mas quando a gente fala que uma pessoa gosta de tradição, temos a impressão de que ela é retrógrada, reacionária, de direita. E não é assim. Daqui a 10, 15 anos, vamos mudar outra vez? Em vez disso, vamos tornar esse nome histórico. Que daqui a 100 anos seja o mesmo nome. Isso não quer dizer que não devemos evoluir. Continuo achando que o nome não é fundamental para definir o que se faz aqui dentro.
Outro fato marcante da sua gestão foi a ampliação das vagas do curso de Bacharelado em Ciências de Computação – de 40 para 100 – e a criação do curso de Engenharia de Computação – 50 vagas. Esse crescimento das atividades não foi acompanhado pelo aumento do quadro técnico-administrativo. Como foi lidar com esse desafio?
A gente foi se organizando. Houve um aumento no número de docentes, mas o número de funcionários não cresceu o quanto seria necessário. De certa forma, isso faz que nossos funcionários se organizem de uma forma bastante eficiente.
Mas o crescimento traz alguns prejuízos no dia a dia. A gente perde um pouco a naturalidade da convivência porque é preciso ser mais formal. E o fato de haver certa pessoalidade, por exemplo, na seleção de docentes, tornava mais fácil planejar o desenvolvimento do Instituto. Agora a gente contrata um docente por concurso, que é muito competente, mas muitas vezes não tem o perfil de que gostaríamos. Isso é muito importante em uma instituição acadêmica. Aliás, esse é um ponto sobre o qual a Universidade deveria se debruçar e resolver.
Há, é claro, o lado positivo do crescimento: nossa inserção no contexto nacional e internacional. Quando éramos pequenos, nosso impacto era local. Agora, somos mais globais.
O que há de plácido em Plácido?
Eu passo a impressão de uma pessoa afável. Talvez eu seja afável. Mas vou ser honesto: briguei muito aqui. Eu nem sempre fui bem aceito. Quando me indicaram para diretor, eu não era da situação, mas da oposição. Na universidade, as pessoas que estão mais no começo da carreira são as que têm menos poder. E eu sempre tive muita afinidade com essa turma, então eu sempre fui oposição nesse sentido, por ser a parte mais fraca. Foi uma surpresa ter sido indicado diretor porque sempre fui muito questionador.
Mas foi bom, viu? Se eu fosse voltar atrás, não mudaria muita coisa não. Meu orientador, o Nelson, falava assim: a gente é feito de certo barro, e não tem como mudar.
Biblioteca Achille Bassi, um capítulo à parte
Houve um pequeno contratempo no início da gestão de Plácido: a obtenção de recursos para a construção do novo prédio da Biblioteca Achille Bassi. Segundo ele, o diretor anterior, professor Paulo Masiero, já havia conversado com a administração central da USP e os recursos estavam garantidos para o projeto.
No entanto, houve uma mudança institucional e o órgão que era responsável pelas construções, o Fundusp, deixou de existir. Conclusão: o dinheiro sumiu! “Eu briguei muito e, no fim, consegui a verba diretamente com o reitor, Adolpho José Melphi”, contou. No final da gestão de Plácido, a biblioteca começou funcionar parcialmente e foi inaugurado o último andar do prédio, onde está a hemeroteca. “Essa é uma das características do nosso Instituto: um diretor não procura derrubar o que o outro fez. Isso é uma das virtudes da nossa administração: a mudança de gestão não significa uma ruptura drástica na administração”, disse.
Ele também destacou o esforço pela realização do projeto de jardinagem para o entorno do novo prédio, desenvolvido pelo professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Sílvio Macedo, um dos responsáveis pelo projeto de reforma da Praça do Relógio da USP, no campus Cidade Universitária, em São Paulo.
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Plácido (último à direita) com o professor Nelson Onuchic (na cadeira de rodas):
um dos esforços de sua administração foi garantir acessibilidade aos prédios do ICMC |
Casado com a também professora de matemática Carmem Maria, que conheceu quando estava fazendo faculdade em Rio Claro, Plácido tem dois filhos: Gustavo, que nasceu em 1971, logo que Plácido foi contratado pelo ICMC; e Ariane, a caçula, nascida em 1975. Formada em direito, Ariane é também psicóloga e trabalha atualmente na Prefeitura Municipal de São Carlos. Já Gustavo é formado em Engenharia Mecânica pela EESC, trabalha atualmente na AGCO, em Mogi das Cruzes, e tem dois filhos: Luca e Mateu.
Esta entrevista está disponível na revista ICMCotidi@no, edição 103, disponível eletronicamente no ISSUU (icmc.usp.br/e/488ae) ou em PDF (icmc.usp.br/e/4f79d).
Texto e fotos: Denise Casatti - Assessoria de Comunicação ICMC/USP
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