Mostrando postagens com marcador perfil. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador perfil. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 8 de março de 2019

Dia Internacional da Mulher: elas celebram as exatas com todas as suas singularidades

As mulheres ainda são uma minoria nas ciências exatas, mas têm se unido para romper a invisibilidade e inspirar futuras cientistas





São muitos os substantivos femininos contidos nas ciências exatas: tem a matemática, a computação e a estatística, por exemplo. Mas a diversidade abarcada nas palavras e pesquisas realizadas na área ainda não se faz presente quando o assunto é a quantidade de mulheres que atuam nesse mundo exato, ainda tão predominantemente masculino. 

Na matemática, por exemplo, em todo o mundo, elas são aproximadamente 30% dos estudantes no início de carreira, mas, aos poucos, vão ficando pelo caminho: ocupam apenas cerca de 10% dos cargos de liderança nesse campo profissional. No Brasil, menos de 45% dos ingressantes em cursos de graduação em matemática são mulheres. Conforme subimos os degraus da carreira científica, o percentual vai diminuindo e se reduz a 15% quando a análise leva em conta os bolsistas de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 

O que faz essa trajetória tomar a forma de um funil e a equação não fechar? Se é fato que elas não se interessam por ciências exatas por que, em menos de 24 horas, esgotaram-se as 200 vagas de uma escola de verão destinada a meninas que desejam desenvolver aplicativos? Oferecida pelo Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, a escola atraiu garotas de 10 a 18 anos vindas de todo o Estado de São Paulo: há pais que estão encarando o desafio de, durante cinco sábados, percorrer quatro horas de viagem de ida e de volta apenas para possibilitar que suas filhas participem do evento. Meninas que não conseguiram uma das disputadas vagas enviavam mensagens pedindo para que fossem incluídas na iniciativa e lotaram as caixas de e-mail do Grupo de Alunas de Ciências Exatas (GRACE) do ICMC, que coordena o evento. 

A demanda urge por ser atendida: sim, as mulheres são de exatas, assim como são de humanas e de biológicas. Mas não é preciso ser versado em matemática para imaginar o que ocorre no meio do caminho que era para ser exato: tem muitas pedras, como diria Carlos Drummond de Andrade. Alivia saber que tem também poesia na jornada, pois as histórias singulares das mulheres que desbravaram esse terreno mostram que é possível superar os inúmeros percalços. São histórias para inspirar as meninas de hoje a se tornarem as pesquisadoras do amanhã em matemática, computação, estatística ou em qualquer outra área do conhecimento que elas quiserem. 

Carolina Araújo foi uma das quatro matemáticas brasileiras convidadas para ministrar uma palestra no Congresso Internacional de Matemáticos, realizado em agosto de 2018 no Rio de Janeiro
(crédito da imagem: Marcos Arcoverde/ICM 2018)

Percepção singular – “Eu não entendia, muitas vezes, o porquê das discussões sobre gênero que aconteciam especialmente nos Estados Unidos, onde havia esses debates sobre as mulheres na ciência. Até que eu comecei a estudar, a olhar os dados, a ler sobre o assunto, a ver as estatísticas e a perceber que havia algo errado”, diz a matemática Carolina Araújo. Até este ano, ela era a única mulher a fazer parte do time de cerca de 50 pesquisadores do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), no Rio de Janeiro, que está efetuando a contratação de mais uma mulher. 

Mas foi só nos últimos cinco anos que Carolina começou a compreender a relevância da percepção feminina: “Todas nós somos singulares e temos que aceitar a nossa singularidade porque é daí que vai vir a inovação, a criatividade”. O ponto crucial na mudança de percepção de Carolina está localizado no princípio da linha do tempo de 2015, quando ela recebeu o convite para fazer parte do Comitê para Mulheres em Matemática da União Internacional Matemática. 

Nesse tempo, a pesquisadora já estava engajada no comitê organizador do Congresso Internacional de Matemáticos (ICM), que aconteceu pela primeira vez no Brasil de 1 a 9 de agosto de 2018. Por isso, o Comitê convidou Carolina para estabelecer um elo com os responsáveis pelo ICM. “Foi então que comecei a estudar e a desenvolver outra percepção sobre a questão de gênero. Passei a conversar com outras mulheres e fui ganhando consciência, em um processo que se desenvolveu junto com a organização do Encontro Mundial para Mulheres em Matemática (WM)2.” 

Realizado dia 31 de julho, um dia antes do início do ICM, o Encontro reuniu 350 mulheres de mais de 60 países. Na quinta-feira, 9 de agosto, minutos depois da cerimônia de encerramento do ICM, Carolina estava exausta, mas irradiava felicidade enquanto contava sua história sentada em uma das muitas mesas das lanchonetes instaladas no Riocentro para atender aos 3.018 congressistas de 114 países que conviveram nesse espaço nos dias do Congresso. 

Resume em uma frase a descoberta que mais a surpreendeu ao longo da construção de sua nova perspectiva de gênero na matemática: “As mulheres não percebem o quão forte elas são”. Carolina conta que, quando há uma oferta de emprego com as qualificações necessárias explícitas, se uma mulher não souber fazer metade do que está listado, normalmente não se candidata à vaga. Por outro lado, se um homem nota que pode fazer metade do que é solicitado, é natural que decida se candidatar. “Mesmo tendo consciência, às vezes caio na armadilha e me pego tomando esse tipo de atitude: dizendo que não vou conseguir, que não vou tentar. Por isso, tenho incentivado muito minhas colegas e alunas a se candidatarem a bolsas e prêmios. É algo em que posso atuar e consigo transformar”. 

Outra descoberta de Carolina é sobre a relevância das mulheres criarem redes informais de apoio para compartilharem experiências, ideias e afetos. “Muitas questões que nós achamos que são pessoais, na verdade, permeiam a vida de todas nós. Esse ganho de consciência é empoderador”, revela a pesquisadora, que tem incentivado a formação de redes locais para unir as matemáticas. 

Outro importante aprendizado da singular jornada de Carolina é a maternidade. Mãe de Iago, de três anos, Carolina diz que, ao vivenciar a maternidade, passou a compreender que é preciso criar políticas públicas para que as mulheres não abandonem a ciência para cuidar de seus filhos. Defende a necessidade das universidades disponibilizarem creches e da academia avaliar de forma diferenciada a produção científica das mulheres durante os primeiros anos da maternidade ou da adoção de um filho. “É natural que a produção caia. Mas o impacto pode ser maior ou menor dependendo de cada mulher e da rede de apoio que ela tem. Existe até uma proposta para que seja disponibilizado um espaço na Plataforma Lattes em que a mulher possa inserir os dados do nascimento ou da adoção de filhos”. 

Carolina Araújo com Iago: destaque em um dos painéis da exposição Elas, expressões de matemáticas brasileiras
(crédito da imagem: Rafael Meireles Barroso)

Vídeo para despertar – A matemática Christina Brech também se lembra do ponto crucial para sua mudança de percepção em relação a gênero: foi em 2012, quando já era professora no Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP, em São Paulo. “No dia do lançamento do vídeo Science it´s a girl thing, uma iniciativa da União Europeia, eu acessei a plataforma e assisti. Era catastrófico. Foi tirado do ar em menos de 24 horas. Fiquei chocada. Comecei a ver as discussões que estavam acontecendo na internet a respeito do assunto e aí comecei a pensar mais nessa questão”. 

O vídeo é de assustar: para mostrar que “a ciência é uma coisa de menina”, a área é, literalmente, toda pintada de cor-de-rosa. As meninas andam com seus saltos altos e minissaias por um laboratório de química, repleto de batons e produtos de maquiagem. 

O incômodo mobilizou Christina. Ela começou a pensar que, em todo processo de produção daquele vídeo, havia um viés repleto de estereótipos de gênero e as mulheres não podiam deixar isso acontecer. Não por acaso, Christina participou ativamente do processo de elaboração do documentário Jornadas de Mulheres na Matemática (Journey of Women in Mathematics). Produzido pelo Comitê para Mulheres em Matemática da União Matemática Internacional em parceria com a Simons Foundation, a primeira parte do filme conta a trajetória de três matemáticas: a brasileira Carolina Araújo e as matemáticas Neela Nataraj, da Índia, e Aminatou Pecha, de Camarões. Já a segunda etapa do documentário, filmada durante o (WM)², deu voz a outras seis matemáticas presentes no evento. 

Quando as gravações do documentário foram realizadas no Rio de Janeiro, Christina acompanhou tudo de perto. Para ela, o vídeo tem dois objetivos principais: mostrar que há pesquisadoras na área que podem inspirar meninas e destacar, para a própria comunidade de matemáticos, que essas mulheres existem. “A gente é invisibilizada. Talvez, muitos pensem que não existe pesquisa em matemática em Camarões, menos ainda uma mulher atuando na área. Mas há e ela está fazendo matemática apesar de todas as dificuldades”. 

Entre as inúmeras iniciativas que Christina ajudou a realizar no Brasil em prol de uma maior mobilização das matemáticas está a participação no comitê organizador do primeiro Encontro Paulista de Mulheres na Matemática, realizado em 2016 na Universidade Estadual de Campinas e do ciclo de debates Matemática: substantivo feminino, que aconteceu entre agosto de 2017 e junho de 2018 em 13 universidades de diferentes regiões do país. Ela também participou da equipe responsável pela exposição Ela está em tudo, que retratou 14 mulheres (estudantes e profissionais) que têm em comum o amor pela matemática. Além disso, Christina teve papel importante em prol da criação de uma comissão institucional para acolhimento da mulher no IME e participa de dois coletivos de mulheres na USP em São Paulo.

Christina participou ativamente do processo de elaboração do documentário Journey of Women in Mathematics
(crédito da imagem: arquivo pessoal)

Empatia é fundamental – “Posso adicionar você na rede Quem cala, consente?” Essa pergunta marca um ponto crucial na história da professora Thaís Jordão, do ICMC. Quando respondeu “sim” ao convite feito por Christina Brech por e-mail, no dia 1º de junho de 2015, e passou a fazer parte da rede para tratar de casos de assédio e violência sexual, Thaís começou a mudar sua perspectiva em relação à questão de gênero. “Muitos acontecimentos ao longo da minha carreira e comentários que havia ouvido até ali tinham passado despercebidos, eu não sabia nomear aquelas atitudes como assédio ou discriminação”, conta a professora. 

Com o aumento da conscientização, ela passou a compreender o quanto é fundamental colocar em pauta a discussão sobre a participação das mulheres nas ciências exatas. Quanto mais Thaís se envolve com a questão, mais garotas a procuram para compartilhar suas histórias, desabafar, solicitar um apoio ou apenas buscar um ouvido atento para seus relatos. “Algumas chegam reclamando das dificuldades que enfrentam no curso, comparando-se com algum garoto, que é considerado o gênio da turma. Então, eu tento mostrar que elas são tão capazes quanto os rapazes. Às vezes, só precisam de um toque para aumentar a autoestima e seguir adiante”. 

Um das cenas mais marcantes que a professora vivenciou foi em sala de aula, em um dia de avaliação da disciplina Cálculo III em uma turma de estudantes de Engenharia Aeronáutica. Uma das poucas garotas presentes na sala começou a chorar diante da prova, desesperada. A professora simplesmente acolheu a garota e a acalmou. Gestos simples e empáticos como esse, para Thaís, são tão relevantes e transformadores quanto iniciativas mais formais como a criação, no ano passado, de um grupo de extensão para apoiar as estudantes do ICMC e estimular que mais garotas ingressem em carreiras nas áreas de ciências exatas, o GRACE. Coordenado pela professora Kalinka Castelo Branco, Thaís também faz parte da iniciativa e já tem no currículo duas exposições de sucesso: Elas: expressões de matemáticas brasileiras, que já foi exibida em nove espaços, e Remember Maryam Mirzakhani, uma homenagem à única mulher a ganhar a Medalha Fields, a maior honraria da Matemática. 

A exposição em homenagem a Maryam foi um dos destaques do (WM)2. No encontro surgiu a ideia de criar o Dia da Mulher na Matemática. A data escolhida não poderia ser melhor: 12 de maio, dia do nascimento de Maryam. Nessa data, a mostra em homenagem à única mulher a ganhar a Medalha Fields será exibida em São Carlos, pela primeira vez, no ICMC. Não há dúvida de que a exposição será fonte de inspiração para meninas e mulheres e, talvez, até mesmo um ponto crucial na história de muitas delas.

A professora Thaís Jordão foi a curadora da exposição Remember Maryam Mirzakhani, uma homenagem à única mulher a ganhar a Medalha Fields, a maior honraria da Matemática
(crédito da imagem: Denise Casatti)

Mais histórias de mulheres do ICMC – Você pode ler mais histórias motivadoras conhecendo a trajetória de algumas mulheres que fazem parte do ICMC: como a de Maria Cristina Ferreira de Oliveira, a primeira mulher a assumir a direção do ICMC; ou de Kalinka Castelo Branco, coordenadora do GRACE; ou da professora Solange Rezende; ou da professora Maria Carolina Monard; da estudante Sabrina Tridico, que despertou com o encanto da computação; ou da funcionária e artesã Marília Marino (na página 26 desta edição da revista ICMCotidi@no). Confira também a entrevista com as professoras Maria Aparecida Ruas, a primeira mulher a chefiar o Departamento de Matemática do ICMC, e com a professora Sueli Aki, uma das professoras pioneiras do ICMC 

Texto: Denise Casatti – Assessoria de Comunicação do ICMC/USP 

Para saber mais 
Documentário Journey of Women in Mathematics: https://youtu.be/uNJ7riiPHOY
Projeto Pioneiras da Ciência no Brasil – http://cnpq.br/pioneiras-da-ciencia-do-brasil
Sobre o ciclo de debates Matemática: substantivo feminino – https://matematicasf.wordpress.com/
Sobre a exposição Ela Está em Tudo – http://elaestaemtudo.ime.usp.br
Comitê para Mulheres em Matemática – https://www.mathunion.org/cwm

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Uma mulher à frente do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da USP

Esta é a primeira vez, em 46 anos, que o Instituto está sob direção de uma mulher; filha de um taxista e de uma dona de casa que também era costureira, Cristina sempre estudou em escolas públicas e se tornou professora, tal como as quatro irmãs, em uma universidade pública

Cristina (segunda à esquerda)  logo após a cerimônia de posse como diretora do ICMC:
as quatro irmãs são professoras em universidades públicas brasileiras
(crédito: Denise Casatti)

Este texto não existiria se a história de Maria Cristina Ferreira de Oliveira não fosse uma exceção. O ineditismo é um dos aspectos que mais chamam a atenção na trajetória dessa professora da USP que se tornou a primeira mulher a assumir a direção do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC), umas das cinco unidades de ensino e pesquisa do campus da Universidade, em São Carlos. 

Aliás, é provável que Cristina só tenha aceitado o desafio de relatar o percurso de sua vida porque compreendeu o quanto compartilhá-lo pode ensejar reflexões e até inspirar outras jornadas. Para quem tem uma personalidade reservada como ela, o autoelogio é uma impossibilidade. Talvez seja por isso que a professora se sinta incomodada em expor sua vida, embora esteja tão acostumada a estar diante de plateias em salas de aula e encontros científicos. 

Mesmo com a timidez característica de Cristina nunca saindo de cena, depois de alguns momentos de bate-papo, o diálogo flui espontaneamente e de forma descontraída. Aos poucos, ela se revela com franqueza para o interlocutor, especialmente quando vai detalhando as escolhas que fez ao longo do caminho e a tornaram quem ela é hoje. “Eu tenho muito orgulho de ter feito escola pública e estar aqui. Eu gostaria de ver mais gente com essa história entrando na USP”, diz a professora no início da noite de 18 de junho. 

Cristina discursa na cerimônia de posse: na mesa de honra, ela era a única mulher entre 11 homens
(crédito:Denise Casatti)

Acomodada em uma das mesas no espaço coberto adjacente à lanchonete do Instituto, usando jeans e blusa de malha, ela relata de forma objetiva os princípios e valores que a motivam: “O que muda a vida de uma pessoa é conseguir estudar, fazer um curso de graduação e se sair bem. Assim, ela tem uma opção de vida. É uma oportunidade única. Sou muito agradecida porque eu e minhas quatro irmãs tivemos a oportunidade de estudar. Hoje, a vida que temos é incomparável à vida que meus pais tiveram”. Na fala de Cristina, está a essência do que significa o conhecimento para ela: transformação. 

Cristina e suas quatro irmãs são doutoras e docentes em universidades públicas brasileiras. Nascidas em São Carlos, as cinco irmãs estudaram em escolas públicas durante todo o ensino básico e superior. Taxista, o pai transportava pessoas e mercadorias para cidades vizinhas em sua perua Kombi. Para reforçar a renda da família, a mãe, dona de casa, também costurava. Habilidosa, fez o próprio vestido de casamento e tentou – sem muito sucesso – ensinar o ofício às filhas e iniciá-las na arte do crochê, do bordado e da pintura em tecido. Mas o desejo profundo daquela mãe era expresso em uma frase que dona Diomar repetia à exaustão para as garotas: “Mulher tem que estudar e ter carreira para não depender do marido”. Ela não queria ver as meninas presas a casamentos infelizes por falta de opção, algo bastante comum nos anos 60 e 70 do século passado. 

Descendente de lavradores italianos, dona Diomar só teve oportunidade de cursar até a 4ª série do fundamental. Por isso, mesmo com o orçamento apertado, resistiu à ideia que predominava naquele tempo e não quis que as filhas começassem a trabalhar em uma fábrica assim que concluíssem o ensino médio. Ela e o marido sabiam que, em São Carlos, as meninas tinham a oportunidade de estudar em uma das duas universidades públicas (USP e UFSCar) e, dessa forma, poderiam arcar com o sustento da família até todas se formarem. 

As gêmeas – Cristina e sua irmã gêmea, Maria do Carmo, são as mais velhas do quinteto e as boas notas conquistadas na infância e na adolescência deixaram um legado para a posteridade e um fardo para as caçulas da família. Se as mais novas tiravam nota baixa, os professores logo as lembravam de que era preciso seguir o exemplo das “gêmeas”. Até o sétimo ano do fundamental, as duas permaneceram na Escola Estadual Bispo Dom Gastão, na Vila Prado. Depois, seguiram para a Escola Estadual Professor Arlindo Bittencourt. Foi lá que a professora de matemática Regina Tancredi sugeriu que Cristina poderia cursar matemática, mas que computação também era uma interessante opção para quem gostava de ciências exatas. 

Diomar com as gêmeas Maria Cristina e Maria do Carmo
(crédito: Arquivo pessoal)

Ao concluírem o ensino fundamental, as gêmeas prestaram uma espécie de “vestibulinho” e foram aprovadas – Maria do Carmo em primeiro lugar e Cristina em terceiro – para cursar o ensino médio na Escola Estadual Doutor Álvaro Guião. Inseparáveis até então, a trajetória das duas só deixou de caminhar em paralelo no cursinho, quando Maria do Carmo foi aprovada em Engenharia Química na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) no meio de 1981 e Cristina amargou a frustração de não passar em Engenharia de Materiais. Ela permaneceu no cursinho por mais seis meses sem sua gêmea. Sorte do ICMC que, no início de 1982, conquistaria uma nova aluna: Cristina começou a fazer Ciências de Computação. 

“O bom de ter uma irmã gêmea é que você tem, desde pequenininha, uma pessoa que sempre vai dividir, mais ou menos, as mesmas coisas com você. Quando começa a ir à escola, você não começa sozinha. Quando vai prestar vestibular, tem alguém na mesma direção”, diz Maria do Carmo, a irmã gêmea de Cristina, logo depois da cerimônia de posse da nova diretora, na noite de 17 de agosto. 

Orgulhosa da irmã, Maria do Carmo revela que a cerimônia tem um significado especial: “É uma data marcante para a gente. Amanhã, se meu pai estivesse vivo, faria 86 anos e, com certeza, estaria muito orgulhoso”. Professora no Departamento de Engenharia Química da UFSCar, onde fez a graduação em Engenharia Química, Maria do Carmo conta que a ligação forte com a irmã permanece: “Somos muito companheiras e sempre nos demos muito bem. Só nós duas moramos em São Carlos e dividimos os cuidados com a minha mãe, que está com 83 anos.” 

Aliás, as outras três irmãs também seguiram carreira na área de Química, tal como Maria do Carmo, mas optaram pela graduação na USP, tal como Cristina. Marysilvia, que nasceu cerca de dois anos depois das gêmeas, é hoje professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro; cinco anos adiante, chegou Marystela, que atualmente é professora na Universidade Federal de São Carlos em Sorocaba; a caçula, Mariselma, veio uma década depois das gêmeas e, hoje, é professora na Universidade Federal do ABC. 

Cristina (de vermelho, ao centro) com sua turma durante a formatura em Ciências de Computação no ICMC

Mulheres na USP – Ao ingressar em uma das primeiras turmas de Computação do ICMC, curso oficialmente reconhecido pelo Ministério da Educação em 1981, Cristina encontrou uma sala de aula bastante equilibrada: cerca de 50% dos estudantes eram homens e 50% mulheres. Essa informação pode causar surpresa, já que a área de tecnologia atualmente é ocupada, majoritariamente, por homens. Entre as décadas de 1970 e 1980, houve uma grande inversão nos gêneros da área de tecnologia no mundo todo, mesma época em que surgiu o computador pessoal. 

Nos últimos cinco anos, por exemplo, apenas 9% dos alunos formados no curso de Ciências de Computação do ICMC eram mulheres; no Bacharelado em Sistemas de Informação, o índice chegou a 10% e em Engenharia de Computação, 6%. A diferença começa antes do ingresso na Universidade, já que as carreiras da área de computação são pouco procuradas pelas garotas, uma situação que vem gerando preocupação dentro da academia e estimulado o surgimento de diversas iniciativas destinadas a atrair mais mulheres para as ciências exatas. 

Cristina sabe quanto sua ascensão à diretoria do ICMC é simbólica nesse momento em que a busca pela igualdade de gênero ganha mais relevância a cada dia. Entre as 42 unidades de ensino e pesquisa que compõem a USP, 15 delas (35,71%) têm mulheres na direção atualmente. Mas somente duas dessas 15 unidades são da área de ciências exatas: o ICMC e a Escola Politécnica. “A Universidade como um todo, em média, está bem equilibrada na questão de gênero. Mas algumas áreas ainda têm problemas muito sérios, especialmente devido a aspectos culturais. Aqui em São Carlos, em que há o predomínio das ciências exatas e tecnológicas, temos um problema localizado. Mas, felizmente, pouco a pouco isso está sendo modificado. A posse de uma primeira diretora no ICMC já é um bom sinal. É um marco importante e isso vai ajudar, certamente, esse campus de São Carlos a ter uma alteração, uma renovação”, afirmou o reitor da USP, professor Vahan Agopyan, na noite da posse de Cristina. 

Tornar-se a primeira mulher a ocupar esse cargo de direção não foi algo que Cristina planejou, simplesmente aconteceu de forma natural, especialmente a partir do momento em que foi convidada para ser vice-diretora do Instituto pelo professor Alexandre Nolasco de Carvalho na gestão anterior (2015-2018). O ICMC mantém uma tradição de continuidade e, ao longo dos anos, a tendência é de que quem ocupa a vice-diretoria assuma a direção na gestão seguinte. 

Apesar de destacar que nunca teve dificuldades na carreira por ser mulher, uma situação embaraçosa aconteceu quando Cristina foi indicada para fazer seu primeiro estágio, antes mesmo de se formar. O professor Fernão Stella de Rodrigues Germano, docente do ICMC que já faleceu e dá nome ao maior auditório do Instituto, recebeu certo dia o telefonema de uma grande empresa que atuava em São Carlos e estava em busca da indicação de um estagiário. Fernão logo falou sobre Cristina. Do outro da linha, o representante da empresa frisou que queria a indicação de um homem. Fernão não hesitou e respondeu: “Ela é o melhor homem que eu tenho aqui.” Resultado: Cristina conseguiu o estágio e trabalhou na empresa durante os últimos seis meses do curso, em 1985. 

Mas ela já havia sido capturada pela magia da ciência antes, quando conquistou uma bolsa da FAPESP para desenvolver seu projeto iniciação científica. Lembra-se que essa foi a primeira vez que obteve alguma renda. A iniciação científica despertou em Cristina o desejo de prosseguir na carreira acadêmica e fazer mestrado. O que não imaginava é que, apenas dois meses depois de se formar, ela se tornaria professora no ICMC. “Naquele tempo, a pós-graduação em computação estava começando, havia pouca gente no Instituto e não era preciso fazer concurso para ingressar como docente. Bastava ser aprovado no processo seletivo e se comprometer em ingressar no mestrado”, explica. Foi assim que Cristina e uma colega de sua turma, Rosane Minghim, que também é professora no ICMC até hoje, tornaram-se docentes da USP em fevereiro de 1986. 

O primeiro computador pessoal a gente nunca esquece: em São Carlos, Cristina disputava um dos poucos terminais existentes com outros professores e alunos, foi na Universidade de Wales que teve seu primeiro PC
(crédito: Arquivo pessoal)

Amor e doutorado – “Ninguém teve que pedir mais a mão de uma mulher em casamente do que eu”, brinca Osvaldo Novais de Oliveira Jr, que é casado com Cristina há 31 anos. Professor no Instituto de Física de São Carlos (IFSC), Osvaldo é mais conhecido como “Chu”, apelido carinhoso que ganhou na adolescência, tempo em que a expressão “Chuchu beleza” era moda. Chu explica que, além de receber o “sim” de Cristina, precisou do aval de muito mais gente: primeiro do senhor Walter, pai da moça; depois foi a vez do então departamento de Ciências de Computação e Estatística do ICMC, que precisou liberar a professora recém-contratada para estudar no exterior; a seguir, foi necessário o aceite da Universidade de Wales, no Reino Unido, onde Cristina fez o doutorado; por último, até a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) entrou na dança do “sim”, já que a ida do casal ao Reino Unido só aconteceu porque houve apoio financeiro da instituição, que concedeu uma bolsa de doutorado à Cristina. 

Com a permissão de todas as instâncias cabíveis, Chu e Cristina se casaram no dia 14 de março de 1987. Nem tiveram tempo de curtir a lua de mel. No dia seguinte, embarcaram no voo rumo a Bangor, no Reino Unido, onde Chu já estava fazendo o doutorado desde setembro de 1986 na Universidade de Wales. “Eu nunca tinha viajado para fora do país e meu medo era que estudar lá não desse certo”, conta a professora que, para aproveitar a oportunidade no exterior, precisou abandonar o mestrado que havia começado no IFSC. Deu tão certo que ela fez o doutorado direto antes do tempo previsto, que costuma ser de quatro anos.  

Recém-casados, Chu e Cristina  partiram para o Reino Unido em busca do doutorado
(crédito: Arquivo pessoal)

Em julho de 1990, Cristina e o marido voltaram ao Brasil. Um ano e dois meses depois, nasceu Ligia. Dois anos e quatro meses depois, chegou Tiago. “Eu tenho muito orgulho da minha mãe e dos meus avós. Eu sei que eles insistiram muito para que as filhas estudassem. Ela é um exemplo de retidão, muito responsável e muito correta com tudo”, disse Ligia, emocionada, no fim da cerimônia de posse da mãe como diretora do ICMC. Formada em Direito pela USP, ela mora em São Paulo e diz que se identifica muito com Cristina. 

Como não poderia deixar de ser, o ICMC tem papel relevante nessa história de amor e doutorado. Foi em uma festa promovida por Edson Moreira, hoje professor aposentado do ICMC, que eles se conheceram. Ele já tinha visto a moça algumas vezes, porque ela descia em um ponto de ônibus próximo da república em que Chu morava: “Mas eu nunca teria coragem de me aproximar dela, porque no começo dos anos 80 os estudantes eram muito mal vistos pelos são-carlenses. Não havia qualquer esperança”. Nas festas do Centro Acadêmico Armando Sales de Oliveira (CAASO), a desigualdade de gênero não favorecia qualquer aproximação, em média havia uns 500 homens e umas 5 mulheres. 

Amigo de Edson, Chu estava saindo da festa quando Cristina chegou com algumas amigas. Uma delas, Mônica, era filha do professor Fernão e amiga de Edson. Então, naquele universo tão escasso de mulheres, Edson insistiu para que o amigo não fosse embora. Deu certo: Chu tomou coragem e chamou Cristina para dançar. Na noite seguinte, domingo, ele a convidou para ir à pizzaria. Ela aceitou. Pronto: o casal nunca mais se separou. Era agosto de 1985 e Chu já estava preparando as malas para embarcar no doutorado. O que ele nem Cristina imaginavam é que o amor construído até setembro de 1986 se fortaleceria ainda mais durante os seis meses que permaneceram a um oceano de distância. 

Tiago, Cristina e Ligia logo após a posse da mãe como diretora do ICMC

As trajetórias científicas dos dois às vezes também se cruzam e fazem brotar projetos e artigos. No pós-doutorado, optaram por um local em que ambos pudessem desenvolver seus projetos e foram, carregando os dois filhos, para a Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos, em 2000, onde ficaram por um ano. Chu conta que a esposa é uma líder nata e diz que sua gestão no ICMC “será muito bem feita, porque tudo o que ela faz é muito bem feito”. 

Para Cristina, o Instituto precisa formar cientistas, bacharéis, engenheiros e licenciados com habilidades para desempenhar suas missões não apenas com competência, mas com sabedoria e ética. “À busca por formar recursos humanos de alto nível, gerar e transferir conhecimento para a sociedade, precisamos agregar nossa luta por uma educação de qualidade também nos níveis de ensino fundamental e médio para todo o país. Eu acredito que o acesso à educação de qualidade é a forma mais ampla e mais justa de oferecer igualdade de oportunidades de acesso ao ensino superior àqueles que assim desejarem. Eu e minhas irmãs, aqui presentes, somos um exemplo”, declarou a diretora no seu discurso de posse. 

“Desde o ensino fundamental até a universidade, tive o privilégio de contar com a sabedoria, o apoio e o entusiasmo de muitos professores genuínos, pessoas bem formadas, competentes, exigentes, dedicadas, comprometidas com sua missão e com disposição para apresentar aos alunos um mundo de possibilidades”, completou Cristina, agradecendo a todos os professores que a estimularam a seguir sua carreira. 

Que a história dessa primeira mulher a assumir a diretoria do ICMC seja também um estímulo para as garotas enxergarem o mundo das ciências exatas como uma possibilidade. Só assim a história de Cristina deixará de ser uma exceção. 

Para Cristina, o acesso à educação de qualidade é a forma mais ampla e mais justa de oferecer igualdade de oportunidades de acesso ao ensino superior|
(crédito: Denise Casatti)

Texto: Denise Casatti – Assessoria de Comunicação do ICMC/USP 


Mais informações 
Assessoria de Comunicação do ICMC: (16) 3373.9666 
E-mail: comunica@icmc.usp.br

terça-feira, 8 de maio de 2018

A cientista antenada

Conectando-se com as emoções humanas, uma pesquisadora mineira conseguiu aliar sua carreira acadêmica na área de inteligência artificial com as dimensões menos exatas da vida

Solange (ao centro) abraça o filho Vitor ao lado da filha Naiara e do marido Anandsing
na fazenda Pedra Branca, onde viveu a primeira infância

Uma tiara vermelha com antenas chama a atenção de um garoto que está deitado em um dos leitos da Santa Casa de Misericórdia de São Carlos, cidade no interior do Estado de São Paulo. Da direção da tiara surgem dedos que conversam com o menino como se fossem pequenos seres vivos animados. São aqueles dedos que tiram Vitor, 5 anos, da apatia em que se encontrava há uma semana, desde o momento em que foi internado e deixou de interagir com o mundo. 

Em silêncio, aos poucos, os dedos do garoto também passam a ganhar vida e começam a se comunicar com as mãos daquela mulher que usa tiara vermelha e se localiza no meio do palhaço e da fada, para os quais Vitor não dá a menor bola. Logo, ele se senta à cama e recebe, de presente, uma bexiga azul em formato de cachorro, esculpida pelos dedos alegres e desconhecidos. Aos poucos, aquele trio se despede e sai do quarto mudo. Só depois que cruzam a linha da porta e desaparecem, o silêncio do garoto se rompe e sua voz alcança o corredor do hospital: “Anteninha, eu te amo”. 

É nesse momento que as emoções da mulher de tiara vêm à tona, junto com a imagem de seu próprio filho, que também é Vitor, que também tem 5 anos. Em vez de doente na cama, o filho dela está saudável, brincando na casa em que vivem, a poucos quilômetros dali. Apelidada de Anteninha, Solange Rezende permite-se agora chorar, pois já está fora do quarto. Depois de se recompor, volta ao encontro do garoto. Ao rever Anteninha, Vitor pede outro presente: quer uma cadelinha cor-de-rosa para fazer companhia ao cachorro azul. 

Solange como Anteninha durante a visita que fez à Santa Casa no último domingo, 6 de maio
Ciência com emoção – O acontecimento relatado acima, vivido 13 anos atrás, está marcado na memória de Solange e, ao ressurgir no bate-papo desta manhã de sábado, 5 de maio de 2018, deixa os olhos brilhantes de Anteninha marejados. Professora do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, desde 1991, Solange é uma das 110 voluntárias do grupo Amor em Gotas, que se dedica a levar alegria a crianças hospitalizadas. Atuando como voluntária há 16 anos, hoje ela é uma das gestoras da iniciativa e carrega com orgulho, naquela manhã, o álbum de fotos das inúmeras visitas que já fez. Em uma das imagens, aparece vestida de branca de neve. “A essência da vida está nos detalhes, quando enxergamos o poder que temos em nossas mãos”, diz Solange, e completa: “Às vezes, um pequeno gesto possibilita conexões”. 

No álbum de fotos, destaque para a Branca de Neve
Segundo ela, as experiências vividas como voluntária contribuíram efetivamente para ampliar suas percepções nas pesquisas científicas que realiza na área de inteligência artificial: “O ambiente acadêmico é muito competitivo e somos cobrados a todo tempo. Muitas vezes, ficamos correndo atrás de suprir essas demandas e nos esquecemos da essência da vida”. Ela diz que a atuação no grupo Amor em Gotas, mudou até a forma como lida com seus alunos. “Passei a dar mais abertura para os estudantes. Hoje, sempre que precisam de alguma ajuda, eles me procuram”. 

Em um mundo em que as máquinas têm a capacidade de aprender, em que é possível extrair conhecimento de uma infinidade de dados (a área de mineração de dados é a especialidade de Solange), surge a pergunta: será que um dia os computadores serão capazes de desenvolver uma sensibilidade comparável à de Anteninha e poderão promover novas conexões entre os seres humanos? Para Solange, esse é o limite do desenvolvimento da inteligência artificial. Por mais que o conhecimento avance, ela acredita que as máquinas nunca desenvolverão percepção, sensibilidade e intuição tal como os humanos.


Vida na fazenda – A história dessa pesquisadora começou no interior de Minas Gerais, na cidade de Comendador Gomes. Foi lá, a 40 quilômetros do município, na fazenda Pedra Branca, que ela estabeleceu contato com o universo do conhecimento, guiada pelas mãos de Margarida. Foi ela que lhe apresentou as primeiras letras e números no quarto construído pelo pai para ser escola de Solange, a filha mais velha, do irmão Hugo, um ano mais novo, e de José, três anos mais moço. Como a professora morava na casa da família, a turminha tinha aula 24 horas por dia, sete dias por semana. 

Só no quarto ano do ensino fundamental é que a mãe, Zilda, e as crianças precisaram ir para Frutal, cidade vizinha, e os pequenos começaram a frequentar uma escola pública. Agora, a família tinha também um novo membro: Ataídes, sete anos mais novo do que Solange. O quarteto passava a semana na cidade com a mãe e voltava à fazenda aos finais de semana, onde o pai trabalhava e continuava morando. 

No segundo ano do ensino médio, que Solange cursava pela manhã, conseguiu uma bolsa de estudos para fazer o “Normal” à noite, uma espécie de curso técnico para quem desejava dar aula no ensino fundamental. Naquele tempo, ela já começou a pensar que não queria morar a vida toda naquela região e construir um futuro igual ao da maioria de seus primos de primeiro grau – 82 no total, contando tanto os do lado materno quanto paterno. A inspiração veio, então, de duas primas que tinham prestado vestibular e estudavam na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Com a ajuda delas, Solange convenceu a família de que também deveria fazer faculdade na UFU e foi assim que começou sua trajetória acadêmica: cursando Licenciatura em Ciências, com habilitação em matemática. 

Hugo, Ataídes, a professora Margarida, José e Solange (da esquerda para a direita):
a professora mora hoje em uma fazenda a poucos quilômetros
de onde ensinou as primeiras letras e números para Solange

Da matemática à computação – No início da faculdade, Solange sabia que se tornaria professora e o sonho era fazer pós-graduação em matemática pura na Universidade de Brasília. Sempre foi a professora dos irmãos, por insistência da mãe, já que a caderneta de notas toda azul da garota contrastava com as cadernetas vermelhas dos meninos. Por isso, aos 15 anos, quando o pai perguntou o que ela queria ser quando crescesse, respondeu: “Quero dar aula para gente inteligente”. A resposta dura tinha uma justificativa: os irmãos não gostavam de estudar e ela se sentia uma professora frustrada. “Na verdade, o que eu tentei dizer é que queria dar aula para quem gostasse de aprender”, diz. 

E de gostar de aprender ela sempre gostou. Tanto que, quando o professor de topologia da UFU, Viktor Bojaczuk, voltou de uma viagem à Polônia com um computador portátil Apple em mãos e perguntou aos alunos quem desejava se aprofundar em uma nova área do conhecimento, ela topou de imediato. “Era 1985 e a gente não tinha acesso ao computador, ele ficava fechado em uma sala e quem mexia na máquina era um operador. Nas aulas de programação, nós escrevíamos os códigos em uma folha verde e mandávamos para o operador, rezando para que ele entendesse o que a gente tinha escrito e que a máquina executasse aqueles comandos de forma correta até o final do semestre”, recorda-se Solange. 

Então, quando ela viu pela primeira a oportunidade de mexer diretamente em um computador portátil, não pensou duas vezes. Solange ouviu a palavra inteligência artificial pela primeira vez na aula de Bojarkuzc, que anunciou profeticamente: “Estou aprendendo a programar com uma linguagem diferente, que é totalmente lógica e tem tudo a ver com matemática. Mas é algo muito maior, que vai estar presente na vida de todo mundo no futuro, a inteligência artificial”. 

A tal linguagem de programação é ensinada até hoje no início das disciplinas de inteligência artificial, chama-se Prolog. Depois que teve acesso a programar diretamente no computador usando Prolog, Solange sabia que seu destino não estava mais atrelado à matemática pura, o que ela queria era computação: “O professor Bojaczuk mudou o rumo da minha vida”. Dois outros professores, Sergio Schneider e Costa Pereira, falaram para a garota sobre a USP, em São Carlos, dizendo que lá havia uma professora que atuava na área de inteligência artificial: Carolina Monard. 

Assim que se formou, Solange viajou para São Carlos e conheceu Carolina. Começou a fazer mestrado em Ciências de Computação e Matemática Computacional no ICMC em 1987. Quatro anos depois, quando estava no primeiro ano do doutorado em Engenharia Mecânica, na Escola de Engenharia de São Carlos (EESC), prestou um concurso para se tornar professora no ICMC, onde está até hoje. 

Além de ministrar aulas e realizar pesquisas na área de inteligência artificial, Solange também ensina empreendedorismo. Aliás, ela foi uma das responsáveis, junto com o professor André de Carvalho, também do ICMC, por inserir a temática do empreendedorismo nos cursos de computação do Instituto. Sob sua orientação estão sete doutorandos, três mestrandos, quatro alunos de iniciação científica e um pós-doutorando. Nas quintas à tarde, ela atua como consultora em uma startup são-carlense chamada Itera. Ainda sobra fôlego para o Amor em Gotas e para coordenar o festival de divulgação científica Pint of Science em São Carlos, que acontecerá dias 14, 15 e 16 de maio, juntamente com outras 55 cidades brasileiras e mais 20 países do mundo. “Sou uma apaixonada pela vida e pela possibilidade de ajudar as pessoas que desejam entrar em movimento para buscar seus sonhos”, diz. 

Ao relatar sua história, Solange dá indícios de onde nasce a motivação para o seu fazer. Entre os ensinamentos do pai, seu Amador, falecido há sete anos, uma frase se destaca na memória: “Filha, a vida inteira você tem que cuidar para que o brilho dos seus olhos nunca se apague”. Talvez esse seja o segredo de Solange: manter-se antenada com o que faz os olhos brilharem. 

Encontro no fim de 2017 na casa de Solange:  confraternização reuniu alunos do Laboratório de Inteligência Computacional do ICMC e seus familiares

Texto: Denise Casatti – Assessoria de Comunicação do ICMC/USP 

Mais informações 
Pint of Science São Carlos: https://pintofscience.com.br/events/saocarlos
Laboratório de Inteligência Computacional do ICMC: http://labic.icmc.usp.br
Assessoria de Comunicação do ICMC: (16) 3373.9666 

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Ponte para os números: conheça a história do professor Ederson Moreira

Apaixonado por matemática desde criança, Ederson é, atualmente, professor no ICMC e novo membro afiliado da Academia Brasileira de Ciências

As aplicações e contribuições da matemática para a sociedade
motivam e encantam Ederson em seu trabalho

As primeiras pontes entre Ederson Moreira dos Santos e a matemática não eram de fácil travessia e sequer asfaltadas. Nascido em Cruzeiro do Oeste, no estado do Paraná, passou a infância no pequeno vilarejo de Aparecida do Oeste. Lá, os recursos eram poucos, por isso as crianças precisavam ir até Tuneiras do Oeste, distrito vizinho, para frequentar a escola de nível médio. “Até hoje a estrada que liga os distritos não é pavimentada, por isso, na época de fortes chuvas, o ônibus não conseguia atravessar o percurso e não podíamos ir às aulas”, conta Ederson.

Mesmo enfrentando algumas dificuldades típicas da vida em cidade pequena, Ederson narra uma infância tranquila, repleta de brincadeiras de rua como jogar bola, andar de bicicleta e pescar. Frequentava assiduamente as missas da paróquia da cidade e revela um fato curioso: quase se tornou padre, consequência de sempre ter ajudado nas celebrações. A aptidão religiosa, no entanto, perdeu para a matemática, sua paixão desde cedo.

Um dos professores de ensino médio de Ederson foi um dos principais responsáveis pela sua decisão. Na época, a ideia do seminário ainda era forte, mas o professor foi enfático: ele deveria seguir com os estudos na universidade. A escolhida por ele e pela família foi a Universidade Estadual de Maringá (UEM), pela proximidade com a casa de seu tio. A escolha do curso foi a mais fácil, pois a preferência pela matemática era nítida desde a infância. “Na universidade, eu me encantei pela disciplina de cálculo, passava noites resolvendo exercícios e, naturalmente, me especializei em equações diferenciais parciais”, conta ele. O encantamento e dedicação lhe garantiram o melhor rendimento da turma em sua formatura e um diploma especial de Láurea Acadêmica.

Professores da UEM sugeriram que Ederson seguisse com os estudos na pós-graduação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e assim ele fez. Lá, foi orientado pelo professor Djairo Guedes de Figueiredo , membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) desde 1969. Ederson conta ser muito grato ao professor Djairo pela contribuição à sua carreira, assim como à de outros matemáticos brasileiros e reconhece sua importância. “Sua influência na matemática brasileira fez dele um dos pilares desta ciência em nosso país”, afirma.

Ederson dos Santos fez estágios de pós-doutoramento na Unicamp e na Université Paris VI, além um estágio de pesquisa na Università di Roma Sapienza. Hoje, o novo membro afiliado da ABC é professor do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos. Ele orienta pesquisas sobre equações diferencias parciais (EDPs) e ordinárias (EDOs) e a resolução de problemas relacionados a elas, em particular as chamadas elípticas. O matemático estuda questões acerca da existência e multiplicidade sobre propriedades qualitativas, tais como fenômenos de simetria, concentração, explosão e estabilidade das soluções de problemas envolvendo EDPs e EDOs de segunda e quarta ordens, assim como sistemas de EDPs de segunda ordem.

Ederson explica que a modelagem matemática é uma das melhores formas de se entender fenômenos naturais e parte de sua pesquisa pode ser aplicada em situações reais, como a oscilação de pontes. “A ponte é vista com uma viga e a modelagem envolve uma equação diferencial ordinária (EDO). Em um segundo modelo, o tabuleiro da ponte é considerado uma estrutura bidimensional e a análise é feita através do estudo de uma EDP. Em ambos os modelos, a solução da EDO ou da EDP representa a deformação/oscilação da ponte.” O estudo da estabilidade por meio de teoremas e experimentos numéricos contribuiu, em particular, para o estudo do caso da ponte de Tacoma, que caiu, em 1940, em razão de fortes ventos na região.

São as aplicações e contribuições da matemática para questões da sociedade que motivam e encantam Ederson em seu trabalho. “Em matemática, a prova correta de um teorema ou de uma conjectura torna a afirmação uma verdade absoluta, incontestável. Muitas dessas verdades servem de pilar, ou são então aplicadas para as mais diversas áreas da ciência”, explica ele. Para o matemático, contribuir para a ciência e se tornar membro afiliado da ABC é uma vitória que ganha grande significado por ter vindo de uma família simples e sem acesso à educação. Talvez por isso, para ele, o acesso e a divulgação da educação tenham grande importância. Ederson pretende atuar em favor dessas questões junto à Academia.

Texto: Thaís Soares para o boletim Notícia da ABC
Foto: Reinaldo Mizutani - Assessoria de Comunicação do ICMC

Mais informações
Texto original publicado no site da ABC: www.abc.org.br/?Ponte-para-os-numeros
Assessoria de Comunicação do ICMC: (16) 3373.9666
E-mail: comunica@icmc.usp.nr

quinta-feira, 8 de março de 2018

Ela despertou com o encanto da computação

A história de uma menina que se descobriu na arte de programar 


Sabrina (na primeira fileira, ao centro) foi uma das voluntárias no evento Technovation HackDay, momento em que compartilhou sua história com as participantes da iniciativa
(crédito da imagem: Marina Maldonado/Estúdio Wfk)

Os olhos azuis vibrantes de Sabrina Tridico miravam para as entranhas do computador desmontado. Nas mãos do irmão, a nova placa de vídeo que precisava ser instalada atiçava a curiosidade da menina de 9 anos. Pouco tempo depois, lá estava ela de novo: agora, sentada em frente ao micro, fuçando o interior invisível da máquina. A meta era fazer daquele computador um caderno em branco: eliminar tudo o que havia sido registrado ali. Nesse processo de formatação, ela seguia, mais uma vez, as orientações do irmão, 15 anos mais velho.

Sabrina, aos quatro anos, no colo do irmão, que já tinha 19, e ao lado da mãe
(crédito da imagem: arquivo pessoal)

Quando chegou ao ensino médio e se deparou com a oportunidade de cursar o ensino técnico na área de administração, mecatrônica ou informática, ela percebeu que não faria como as outras garotas, que enxergavam administração como a única alternativa. Para Sabrina, informática era uma escolha natural. Morando em Franca, cidade a cerca de 400 quilômetros de São Paulo, a estudante só havia cursado escolas públicas e descobriu a diversão da arte de programar na primeira aula do curso técnico, também gratuito. “É como fritar um ovo”, diz, lembrando-se que aprendeu a lógica da programação a partir da comparação com a lógica da culinária. 

“Como se frita um ovo? A gente costuma dizer: pega o ovo e coloca na frigideira... Mas não! Como vamos pegar o ovo sem abrir a geladeira? Para o computador, você precisa ensinar passo a passo o que tem que ser feito: abra a geladeira, pegue o ovo, feche a geladeira e assim por diante”, explica Sabrina que, hoje, cursa Ciências de Computação no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos. 

A lembrança do ovo e da frigideira voltam à memória da estudante no momento em que ela está sentada em um dos maiores laboratórios de informática do ICMC, no sexto andar do bloco 6 do Instituto. É sábado, 24 de fevereiro, e Sabrina está novamente diante de um microcomputador: desta vez prepara o cenário onde, daqui a pouco, 74 garotas de 10 a 18 anos vão se sentar para aprender os princípios básicos da programação. Ela é uma das voluntárias no evento Technovation HackDay e, logo mais, estará em frente à tela de projeção do laboratório, compartilhando momentos relevantes de sua trajetória com essas meninas. Todas elas se dividiram em equipes com até cinco participantes cada e estão aqui para desenvolverem o projeto de um aplicativo até o final do dia. A maioria delas nunca teve contato com a arte de programar. 

Por isso, Sabrina aproveita o momento não só para falar sobre sua história, mas também para dar dicas relevantes sobre como essas meninas podem encantar os jurados durante a apresentação de seus projetos. Ela diz para as garotas manterem uma postura poderosa quando estiverem no palco, porque nosso corpo também fala, e coloca em prática o que ensina: mantém a pose de “mulher maravilha”, gesticula, fala em voz alta e com entusiasmo. Os olhos azuis parecem brilhar ainda mais quando ela está assim: feliz. 

Não poderia ser diferente: em breve, Sabrina embarca para os Estados Unidos, onde fará um estágio de três meses em uma empresa de tecnologia chamada Audible, que atua no ramo de livros em áudio. Ela exercerá o papel de engenheira de software em um dos times da empresa que busca soluções para sincronizar as palavras que o leitor ouve por meio do áudio com as palavras que são exibidas em um dispositivo de leitura de livros digitais (ebooks) como o Kindle, por exemplo.

Sabrina foi uma das coordenadoras da Semana de Computação (Semcomp) em 2016
(crédito da imagem: Denise Casatti)

Rumo ao exterior – Como será que Sabrina conseguiu esse estágio almejado por muitos estudantes da área de computação? Tudo começou quando ela se candidatou a uma bolsa, no ano passado, para participar do maior evento do mundo voltado a mulheres na computação, o Grace Hopper Celebration. “Foi a melhor experiência da minha vida e lá eu consegui o estágio”, diz a estudante, que foi uma das 657 mulheres selecionadas para participar do Grace Hopper Celebration, com todas as despesas sendo custeadas pela instituição AnitaB.org

A experiência de participar do evento junto com mais 18 mil mulheres foi marcante: “Conheci meninas da Rússia, do Quênia, da Índia, e dividi quarto com uma norte-americana que faz faculdade, trabalha, tem uma filha de dois anos e estava lá tentando estágio. Ouvir as histórias dessas mulheres foi muito gratificante. Percebi, ainda, que há algo em comum no percurso da maioria das mulheres que entraram na computação: elas tiveram aliados masculinos”. Sabrina participou de palestras, workshops, minicursos e diversas outras atrações promovidas por empresas convidadas durante o Grace Hopper Celebration, que aconteceu de 2 a 4 de outubro de 2017, em Orlando, na Flórida.

"Foi a melhor experiência da minha vida", diz Sabrina sobre a participação no Grace Hopper Celebration
(crédito da imagem: arquivo pessoal)

“Eu notei que muitos problemas que a gente tem aqui também existem em outros países e que a nossa educação na USP é muito forte. Estamos em pé de igualdade com qualquer universidade norte-americana”, completa a estudante. “Recomendo muito a participação no evento Grace Hopper Celebration. Poucas brasileiras se inscrevem, acho que é porque não conhecem”. As inscrições no evento são abertas anualmente e mulheres que estejam em qualquer fase da carreira acadêmica podem concorrer a bolsas  alunas de graduação, pós-graduação, pós-doutorandas e professoras. Segundo Sabrina, o processo seletivo é bastante simples: basta enviar o histórico escolar, o currículo e uma carta de recomendação (tudo em inglês) além de responder a um breve questionário.

Grace Hopper foi uma analista de sistemas da marinha dos Estados Unidos e criou a
primeira linguagem de programação de computadores a se aproximar da linguagem humana
(crédito da imagem: arquivo pessoal)

Empoderamento feminino – A trajetória de Sabrina chamou atenção dos organizadores da Campus Party, o maior evento tecnológico do Brasil, que este ano aconteceu de 30 de janeiro a 4 de fevereiro, no Anhembi, em São Paulo. Ao chegar ao local do evento, ela comentou com um amigo que havia participado do Grace Hopper Celebration e que tinha conseguido um estágio no exterior. O amigo, que participava voluntariamente da organização da Campus Party, relatou a história da garota para um dos responsáveis pelas palestras e Sabrina foi convidada para falar ao público em um dos palcos. Lá, ela contou que entregou currículos para diversas empresas durante o Grace Hopper Celebration e que, ao voltar ao Brasil, foi contatada pela Audible. Depois de quatro entrevistas por Skype, foi chamada para estagiar.

Sabrina no palco da Campus Party
(crédito da imagem: arquivo pessoal)

Aos 22 anos, ela está contando os dias para voltar aos Estados Unidos e acaba de se tornar embaixadora de um movimento de empoderamento feminino na área de tecnologia chamado She++. Está difícil até para Sabrina acreditar no que está acontecendo: “Eu nunca imaginava sair do país, sou muito apegada a minha família. Aliás, nem imaginava entrar na USP, porque sempre estudei em escola pública”. Depois de um ano fazendo cursinho, Sabrina só foi convocada para estudar na USP na sexta chamada da Fuvest, em 2014. 

“Eu sempre fui destemida e desbocada, mas sentia que para as meninas que estavam na sala era um empecilho ser minoria. Como éramos as únicas garotas, os professores sempre sabiam nossos nomes, mas nunca me causaram problemas. Quando terminei o curso técnico, trabalhei por um ano em uma empresa de desenvolvimento web para pagar o cursinho e era a única desenvolvedora lá. Só sofri assédio de um cliente uma vez, que não gostou de ver uma mulher trabalhando no site dele”. 

Ainda bem que os obstáculos só serviram para tornar essa garota do interior ainda mais persistente. Se há encanto na computação, com certeza, ele brilha nos olhos de Sabrina.

Outra paixão de Sabrina, além da computação, é a dança: ela faz parte do grupo de dança do Centro Acadêmico Armando de Salles Oliveira (CAASO)
(crédito da imagem: arquivo pessoal)

segunda-feira, 24 de abril de 2017

O engenheiro que disse não à NASA

Conheça a história de Lucas Fonseca, ex-aluno da USP e coordenador da missão Garatéa-L, que pretende colocar a primeira espaçonave brasileira na órbita da Lua em 2021. Durante o festival de divulgação científica Pint of Science, o público terá a oportunidade de conversar com ele


Um salto gigantesco para o setor aeroespacial brasileiro foi dado em São Carlos em dezembro, quando um balão estratosférico foi lançado da área II do campus da USP

Ele disse “não” a uma vaga de emprego na maior agência espacial do mundo: a NASA. Mas antes que você encontre motivos para a negativa do engenheiro espacial Lucas Fonseca à agência norte-americana, saiba que existe uma ótima explicação: ele só disse “não” porque preferiu participar do que considera “a maior conquista do espaço dos últimos 30 anos”, a missão Rosetta. O projeto da Agência Espacial Europeia enviou uma sonda ao espaço para estudar e, posteriormente, pousar no cometa 67P, que orbita nosso Sistema Solar.

Essa história começou quando Lucas era criança. Ele sempre foi fascinado pelos mistérios do Universo e carregava o sonho de ser astronauta. Visitou por duas vezes a base da NASA no Cabo Canaveral, na Flórida, onde se encantou com os foguetes e traçou como objetivo que um dia trabalharia naquele lugar. Os anos foram se passando e o sonho ficando cada vez mais aceso. Como na época não existia no Brasil cursos de graduação voltados à área aeroespacial, Lucas decidiu estudar engenharia mecatrônica na Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) na USP.

Foi durante esse período que o então estudante começou as tentativas de, despretensiosamente, realizar seu desejo. “Eu enviei meu currículo para a NASA inúmeras vezes, mas nunca fui chamado”. Isso não abalou Lucas, que manteve a persistência. Depois de concluir a graduação, resolveu se aproximar mais da sua área de interesse e ingressou no mestrado em engenharia espacial no Instituto Superior de Aeronáutica e Espaço de Toulouse, na França. Eis que, após o término do curso e de diversas tentativas frustradas, o momento mais aguardado de sua vida chegou: o convite da NASA.

Mas o que era para ser um instante de extrema felicidade tornou-se uma incógnita. Ele não esperava que, junto ao convite da agência americana, receberia a oportunidade do governo alemão de trabalhar para a ESA na missão Rosetta. A grandeza e a importância do projeto fez com que Lucas optasse por ficar na Europa, decisão de que não se arrepende: “Fui o único brasileiro a participar da equipe, isso me dá bastante credibilidade nos dias de hoje”.

Lucas sempre foi fascinado pelos mistérios do Universo

Novos desafios – A sede pela exploração espacial dificilmente será saciada por Lucas algum dia, tanto que, quando voltou ao Brasil em 2013, já trazia na bagagem uma nova ambição: executar uma missão no país que ultrapassasse a órbita terrestre. Junto com Douglas Galante, pesquisador graduado em Ciências Moleculares pela USP e especialista em astrobiologia, elaborou um experimento. “Vamos estudar como alguns seres vivos reagem a ambientes extremos. Para isso, enviaremos bactérias dentro de um pequeno satélite que irá circular por um ano na órbita da Lua. Dessa forma, poderemos descobrir se elas sofrem algum tipo de alteração genética”, explica Lucas.

O projeto do satélite lunar recebeu o nome de Garatéa-L e é coordenado por Lucas. Além de receber suporte de empresas e institutos europeus, conta com a participação do Grupo Zenith, da EESC, o qual Lucas ajudou a fundar. Também contribuem com o projeto pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), do Instituto Mauá de Tecnologia e da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

A ideia da missão coordenada atualmente por Lucas é colocar um experimento científico na órbita da Lua

Amor pelo desconhecido – Um pequeno passo para a Garatéa-L e um salto gigantesco para o setor aeroespacial brasileiro foi dado em São Carlos no dia 19 de dezembro do ano passado, quando um balão estratosférico foi lançado da área II do campus da USP. Havia uma sonda acoplada a esse balão, que foi batizada de Garatéa II – assim chamada por ser o segundo voo da série a levar experimentos a uma altitude de até 30 km. A essa distância do chão, a pressão atmosférica é um centésimo da encontrada ao nível do mar e a camada de ozônio já começa a ficar para trás, permitindo a alta incidência de raios ultravioleta do Sol. Os experimentos e componentes enviados por esse balão serão incorporados, mais tarde, ao satélite lunar Garatéa-L.

Esse será o tema do bate-papo De São Carlos para o espaço: a fronteira final, que acontecerá durante o festival de divulgação científica Pint of Science, na noite de 15 de maio, em São Carlos. É quando o público poderá conhecer detalhadamente o projeto, saber mais sobre as novas tecnologias aeroespaciais que estão sendo desenvolvidas e esclarecer as dúvidas diretamente com Lucas, Douglas e mais dois convidados: o filósofo Alexey Dodsworth e o jornalista Salvador Nogueira.

Lucas e Douglas também participarão do festival em Campinas, durante o bate-papo Da poeira às estrelas, como a humanidade pode conquistar o universo?, na noite de 17 de maio. Quem estiver presente, descobrirá que tipo de tecnologias devem ser desenvolvidas para que possamos habitar outros planetas.

“O Brasil não investe muito no campo aeroespacial e se não começarmos a falar mais sobre o tema e motivar as pessoas a entender e até mesmo querer trabalhar no ramo, vai chegar um momento em que será inviável correr atrás do tempo perdido”, conta o engenheiro, que é proprietário de uma empresa de tecnologia espacial, a Airvantis. Enquanto luta por maior visibilidade da pesquisa espacial, Lucas prosseguirá em busca de novas descobertas: “Fazer o que ainda ninguém fez me motiva muito. Por isso, eu amo o desconhecido”.

Sobre o Pint of Science – 22 cidades brasileiras vão sediar o Pint of Science este ano no Brasil, nas noites de 15, 16 e 17 de maio. Em São Carlos, o evento é realizado pelo Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP; já em Campinas, a iniciativa é realizada pela NuminaLabs. Diversos pesquisadores brasileiros, de diferentes áreas do conhecimento, estarão à disposição para conversar com o público nos bares e restaurantes onde a iniciativa ocorrerá. A participação no evento é gratuita e os interessados só pagarão o que consumirem nos locais. Confira a programação completa no site www.pintofscience.com.br.

Texto: Henrique Fontes – Assessoria de Comunicação do Pint of Science Brasil

Mais informações
Site do Pint of Science Brasil: www.pintofscience.com.br
Página no Facebook: https://www.facebook.com/pintbrasil
Assista ao vídeo da missão Garatéa II: https://youtu.be/QoqiUDDEepY
Assessoria de imprensa: (16) 3373-8171
E-mail: pintcomunica@gmail.com