São muitos os substantivos femininos contidos nas ciências exatas: tem a matemática, a computação e a estatística, por exemplo. Mas a diversidade abarcada nas palavras e pesquisas realizadas na área ainda não se faz presente quando o assunto é a quantidade de mulheres que atuam nesse mundo exato, ainda tão predominantemente masculino.
Na matemática, por exemplo, em todo o mundo, elas são aproximadamente 30% dos estudantes no início de carreira, mas, aos poucos, vão ficando pelo caminho: ocupam apenas cerca de 10% dos cargos de liderança nesse campo profissional. No Brasil, menos de 45% dos ingressantes em cursos de graduação em matemática são mulheres. Conforme subimos os degraus da carreira científica, o percentual vai diminuindo e se reduz a 15% quando a análise leva em conta os bolsistas de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
O que faz essa trajetória tomar a forma de um funil e a equação não fechar? Se é fato que elas não se interessam por ciências exatas por que, em menos de 24 horas, esgotaram-se as 200 vagas de uma
escola de verão destinada a meninas que desejam desenvolver aplicativos? Oferecida pelo Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, a escola atraiu garotas de 10 a 18 anos vindas de todo o Estado de São Paulo: há pais que estão encarando o desafio de, durante cinco sábados, percorrer quatro horas de viagem de ida e de volta apenas para possibilitar que suas filhas participem do evento. Meninas que não conseguiram uma das disputadas vagas enviavam mensagens pedindo para que fossem incluídas na iniciativa e lotaram as caixas de e-mail do
Grupo de Alunas de Ciências Exatas (GRACE) do ICMC, que coordena o evento.
A demanda urge por ser atendida: sim, as mulheres são de exatas, assim como são de humanas e de biológicas. Mas não é preciso ser versado em matemática para imaginar o que ocorre no meio do caminho que era para ser exato: tem muitas pedras, como diria Carlos Drummond de Andrade. Alivia saber que tem também poesia na jornada, pois as histórias singulares das mulheres que desbravaram esse terreno mostram que é possível superar os inúmeros percalços. São histórias para inspirar as meninas de hoje a se tornarem as pesquisadoras do amanhã em matemática, computação, estatística ou em qualquer outra área do conhecimento que elas quiserem.
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Carolina Araújo foi uma das quatro matemáticas brasileiras convidadas para ministrar uma palestra no Congresso Internacional de Matemáticos, realizado em agosto de 2018 no Rio de Janeiro
(crédito da imagem: Marcos Arcoverde/ICM 2018) |
Percepção singular – “Eu não entendia, muitas vezes, o porquê das discussões sobre gênero que aconteciam especialmente nos Estados Unidos, onde havia esses debates sobre as mulheres na ciência. Até que eu comecei a estudar, a olhar os dados, a ler sobre o assunto, a ver as estatísticas e a perceber que havia algo errado”, diz a matemática Carolina Araújo. Até este ano, ela era a única mulher a fazer parte do time de cerca de 50 pesquisadores do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), no Rio de Janeiro, que está efetuando a contratação de mais uma mulher.
Mas foi só nos últimos cinco anos que Carolina começou a compreender a relevância da percepção feminina: “Todas nós somos singulares e temos que aceitar a nossa singularidade porque é daí que vai vir a inovação, a criatividade”. O ponto crucial na mudança de percepção de Carolina está localizado no princípio da linha do tempo de 2015, quando ela recebeu o convite para fazer parte do
Comitê para Mulheres em Matemática da União Internacional Matemática.
Nesse tempo, a pesquisadora já estava engajada no comitê organizador do Congresso Internacional de Matemáticos (ICM), que aconteceu pela primeira vez no Brasil de 1 a 9 de agosto de 2018. Por isso, o Comitê convidou Carolina para estabelecer um elo com os responsáveis pelo ICM. “Foi então que comecei a estudar e a desenvolver outra percepção sobre a questão de gênero. Passei a conversar com outras mulheres e fui ganhando consciência, em um processo que se desenvolveu junto com a organização do
Encontro Mundial para Mulheres em Matemática (WM)2.”
Realizado dia 31 de julho, um dia antes do início do ICM, o Encontro reuniu 350 mulheres de mais de 60 países. Na quinta-feira, 9 de agosto, minutos depois da cerimônia de encerramento do ICM, Carolina estava exausta, mas irradiava felicidade enquanto contava sua história sentada em uma das muitas mesas das lanchonetes instaladas no Riocentro para atender aos 3.018 congressistas de 114 países que conviveram nesse espaço nos dias do Congresso.
Resume em uma frase a descoberta que mais a surpreendeu ao longo da construção de sua nova perspectiva de gênero na matemática: “As mulheres não percebem o quão forte elas são”. Carolina conta que, quando há uma oferta de emprego com as qualificações necessárias explícitas, se uma mulher não souber fazer metade do que está listado, normalmente não se candidata à vaga. Por outro lado, se um homem nota que pode fazer metade do que é solicitado, é natural que decida se candidatar. “Mesmo tendo consciência, às vezes caio na armadilha e me pego tomando esse tipo de atitude: dizendo que não vou conseguir, que não vou tentar. Por isso, tenho incentivado muito minhas colegas e alunas a se candidatarem a bolsas e prêmios. É algo em que posso atuar e consigo transformar”.
Outra descoberta de Carolina é sobre a relevância das mulheres criarem redes informais de apoio para compartilharem experiências, ideias e afetos. “Muitas questões que nós achamos que são pessoais, na verdade, permeiam a vida de todas nós. Esse ganho de consciência é empoderador”, revela a pesquisadora, que tem incentivado a formação de redes locais para unir as matemáticas.
Outro importante aprendizado da singular jornada de Carolina é a maternidade. Mãe de Iago, de três anos, Carolina diz que, ao vivenciar a maternidade, passou a compreender que é preciso criar políticas públicas para que as mulheres não abandonem a ciência para cuidar de seus filhos. Defende a necessidade das universidades disponibilizarem creches e da academia avaliar de forma diferenciada a produção científica das mulheres durante os primeiros anos da maternidade ou da adoção de um filho. “É natural que a produção caia. Mas o impacto pode ser maior ou menor dependendo de cada mulher e da rede de apoio que ela tem. Existe até uma proposta para que seja disponibilizado um espaço na Plataforma Lattes em que a mulher possa inserir os dados do nascimento ou da adoção de filhos”.
Vídeo para despertar – A matemática Christina Brech também se lembra do ponto crucial para sua mudança de percepção em relação a gênero: foi em 2012, quando já era professora no Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP, em São Paulo. “No dia do lançamento do vídeo
Science it´s a girl thing, uma iniciativa da União Europeia, eu acessei a plataforma e assisti. Era catastrófico. Foi tirado do ar em menos de 24 horas. Fiquei chocada. Comecei a ver as discussões que estavam acontecendo na internet a respeito do assunto e aí comecei a pensar mais nessa questão”.
O vídeo é de assustar: para mostrar que “a ciência é uma coisa de menina”, a área é, literalmente, toda pintada de cor-de-rosa. As meninas andam com seus saltos altos e minissaias por um laboratório de química, repleto de batons e produtos de maquiagem.
O incômodo mobilizou Christina. Ela começou a pensar que, em todo processo de produção daquele vídeo, havia um viés repleto de estereótipos de gênero e as mulheres não podiam deixar isso acontecer. Não por acaso, Christina participou ativamente do processo de elaboração do documentário
Jornadas de Mulheres na Matemática (Journey of Women in Mathematics). Produzido pelo Comitê para Mulheres em Matemática da União Matemática Internacional em parceria com a Simons Foundation, a primeira parte do filme conta a trajetória de três matemáticas: a brasileira Carolina Araújo e as matemáticas Neela Nataraj, da Índia, e Aminatou Pecha, de Camarões. Já a segunda etapa do documentário, filmada durante o (WM)², deu voz a outras seis matemáticas presentes no evento.
Quando as gravações do documentário foram realizadas no Rio de Janeiro, Christina acompanhou tudo de perto. Para ela, o vídeo tem dois objetivos principais: mostrar que há pesquisadoras na área que podem inspirar meninas e destacar, para a própria comunidade de matemáticos, que essas mulheres existem. “A gente é invisibilizada. Talvez, muitos pensem que não existe pesquisa em matemática em Camarões, menos ainda uma mulher atuando na área. Mas há e ela está fazendo matemática apesar de todas as dificuldades”.
Entre as inúmeras iniciativas que Christina ajudou a realizar no Brasil em prol de uma maior mobilização das matemáticas está a participação no comitê organizador do primeiro
Encontro Paulista de Mulheres na Matemática, realizado em 2016 na Universidade Estadual de Campinas e do ciclo de debates
Matemática: substantivo feminino, que aconteceu entre agosto de 2017 e junho de 2018 em 13 universidades de diferentes regiões do país. Ela também participou da equipe responsável pela exposição
Ela está em tudo, que retratou 14 mulheres (estudantes e profissionais) que têm em comum o amor pela matemática. Além disso, Christina teve papel importante em prol da criação de uma comissão institucional para acolhimento da mulher no IME e participa de dois coletivos de mulheres na USP em São Paulo.
Empatia é fundamental – “Posso adicionar você na rede
Quem cala, consente?” Essa pergunta marca um ponto crucial na história da professora Thaís Jordão, do ICMC. Quando respondeu “sim” ao convite feito por Christina Brech por e-mail, no dia 1º de junho de 2015, e passou a fazer parte da rede para tratar de casos de assédio e violência sexual, Thaís começou a mudar sua perspectiva em relação à questão de gênero. “Muitos acontecimentos ao longo da minha carreira e comentários que havia ouvido até ali tinham passado despercebidos, eu não sabia nomear aquelas atitudes como assédio ou discriminação”, conta a professora.
Com o aumento da conscientização, ela passou a compreender o quanto é fundamental colocar em pauta a discussão sobre a participação das mulheres nas ciências exatas. Quanto mais Thaís se envolve com a questão, mais garotas a procuram para compartilhar suas histórias, desabafar, solicitar um apoio ou apenas buscar um ouvido atento para seus relatos. “Algumas chegam reclamando das dificuldades que enfrentam no curso, comparando-se com algum garoto, que é considerado o gênio da turma. Então, eu tento mostrar que elas são tão capazes quanto os rapazes. Às vezes, só precisam de um toque para aumentar a autoestima e seguir adiante”.
Um das cenas mais marcantes que a professora vivenciou foi em sala de aula, em um dia de avaliação da disciplina Cálculo III em uma turma de estudantes de Engenharia Aeronáutica. Uma das poucas garotas presentes na sala começou a chorar diante da prova, desesperada. A professora simplesmente acolheu a garota e a acalmou. Gestos simples e empáticos como esse, para Thaís, são tão relevantes e transformadores quanto iniciativas mais formais como a criação, no ano passado, de um grupo de extensão para apoiar as estudantes do ICMC e estimular que mais garotas ingressem em carreiras nas áreas de ciências exatas, o GRACE. Coordenado pela professora Kalinka Castelo Branco, Thaís também faz parte da iniciativa e já tem no currículo duas exposições de sucesso:
Elas: expressões de matemáticas brasileiras, que já foi exibida em
nove espaços, e
Remember Maryam Mirzakhani, uma homenagem à única mulher a ganhar a Medalha Fields, a maior honraria da Matemática.
A exposição em homenagem a Maryam foi um dos destaques do (WM)2. No encontro surgiu a ideia de criar o
Dia da Mulher na Matemática. A data escolhida não poderia ser melhor: 12 de maio, dia do nascimento de Maryam. Nessa data, a mostra em homenagem à única mulher a ganhar a Medalha Fields será exibida em São Carlos, pela primeira vez, no ICMC. Não há dúvida de que a exposição será fonte de inspiração para meninas e mulheres e, talvez, até mesmo um ponto crucial na história de muitas delas.
Texto: Denise Casatti – Assessoria de Comunicação do ICMC/USP
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