Conectando-se com as emoções humanas, uma pesquisadora mineira conseguiu aliar sua carreira acadêmica na área de inteligência artificial com as dimensões menos exatas da vida
Solange (ao centro) abraça o filho Vitor ao lado da filha Naiara e do marido Anandsing na fazenda Pedra Branca, onde viveu a primeira infância |
Uma tiara vermelha com antenas chama a atenção de um garoto que está deitado em um dos leitos da Santa Casa de Misericórdia de São Carlos, cidade no interior do Estado de São Paulo. Da direção da tiara surgem dedos que conversam com o menino como se fossem pequenos seres vivos animados. São aqueles dedos que tiram Vitor, 5 anos, da apatia em que se encontrava há uma semana, desde o momento em que foi internado e deixou de interagir com o mundo.
Em silêncio, aos poucos, os dedos do garoto também passam a ganhar vida e começam a se comunicar com as mãos daquela mulher que usa tiara vermelha e se localiza no meio do palhaço e da fada, para os quais Vitor não dá a menor bola. Logo, ele se senta à cama e recebe, de presente, uma bexiga azul em formato de cachorro, esculpida pelos dedos alegres e desconhecidos. Aos poucos, aquele trio se despede e sai do quarto mudo. Só depois que cruzam a linha da porta e desaparecem, o silêncio do garoto se rompe e sua voz alcança o corredor do hospital: “Anteninha, eu te amo”.
É nesse momento que as emoções da mulher de tiara vêm à tona, junto com a imagem de seu próprio filho, que também é Vitor, que também tem 5 anos. Em vez de doente na cama, o filho dela está saudável, brincando na casa em que vivem, a poucos quilômetros dali. Apelidada de Anteninha, Solange Rezende permite-se agora chorar, pois já está fora do quarto. Depois de se recompor, volta ao encontro do garoto. Ao rever Anteninha, Vitor pede outro presente: quer uma cadelinha cor-de-rosa para fazer companhia ao cachorro azul.
Solange como Anteninha durante a visita que fez à Santa Casa no último domingo, 6 de maio |
Ciência com emoção – O acontecimento relatado acima, vivido 13 anos atrás, está marcado na memória de Solange e, ao ressurgir no bate-papo desta manhã de sábado, 5 de maio de 2018, deixa os olhos brilhantes de Anteninha marejados. Professora do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, desde 1991, Solange é uma das 110 voluntárias do grupo Amor em Gotas, que se dedica a levar alegria a crianças hospitalizadas. Atuando como voluntária há 16 anos, hoje ela é uma das gestoras da iniciativa e carrega com orgulho, naquela manhã, o álbum de fotos das inúmeras visitas que já fez. Em uma das imagens, aparece vestida de branca de neve. “A essência da vida está nos detalhes, quando enxergamos o poder que temos em nossas mãos”, diz Solange, e completa: “Às vezes, um pequeno gesto possibilita conexões”.
No álbum de fotos, destaque para a Branca de Neve |
Em um mundo em que as máquinas têm a capacidade de aprender, em que é possível extrair conhecimento de uma infinidade de dados (a área de mineração de dados é a especialidade de Solange), surge a pergunta: será que um dia os computadores serão capazes de desenvolver uma sensibilidade comparável à de Anteninha e poderão promover novas conexões entre os seres humanos? Para Solange, esse é o limite do desenvolvimento da inteligência artificial. Por mais que o conhecimento avance, ela acredita que as máquinas nunca desenvolverão percepção, sensibilidade e intuição tal como os humanos.
Vida na fazenda – A história dessa pesquisadora começou no interior de Minas Gerais, na cidade de Comendador Gomes. Foi lá, a 40 quilômetros do município, na fazenda Pedra Branca, que ela estabeleceu contato com o universo do conhecimento, guiada pelas mãos de Margarida. Foi ela que lhe apresentou as primeiras letras e números no quarto construído pelo pai para ser escola de Solange, a filha mais velha, do irmão Hugo, um ano mais novo, e de José, três anos mais moço. Como a professora morava na casa da família, a turminha tinha aula 24 horas por dia, sete dias por semana.
Só no quarto ano do ensino fundamental é que a mãe, Zilda, e as crianças precisaram ir para Frutal, cidade vizinha, e os pequenos começaram a frequentar uma escola pública. Agora, a família tinha também um novo membro: Ataídes, sete anos mais novo do que Solange. O quarteto passava a semana na cidade com a mãe e voltava à fazenda aos finais de semana, onde o pai trabalhava e continuava morando.
No segundo ano do ensino médio, que Solange cursava pela manhã, conseguiu uma bolsa de estudos para fazer o “Normal” à noite, uma espécie de curso técnico para quem desejava dar aula no ensino fundamental. Naquele tempo, ela já começou a pensar que não queria morar a vida toda naquela região e construir um futuro igual ao da maioria de seus primos de primeiro grau – 82 no total, contando tanto os do lado materno quanto paterno. A inspiração veio, então, de duas primas que tinham prestado vestibular e estudavam na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Com a ajuda delas, Solange convenceu a família de que também deveria fazer faculdade na UFU e foi assim que começou sua trajetória acadêmica: cursando Licenciatura em Ciências, com habilitação em matemática.
Da matemática à computação – No início da faculdade, Solange sabia que se tornaria professora e o sonho era fazer pós-graduação em matemática pura na Universidade de Brasília. Sempre foi a professora dos irmãos, por insistência da mãe, já que a caderneta de notas toda azul da garota contrastava com as cadernetas vermelhas dos meninos. Por isso, aos 15 anos, quando o pai perguntou o que ela queria ser quando crescesse, respondeu: “Quero dar aula para gente inteligente”. A resposta dura tinha uma justificativa: os irmãos não gostavam de estudar e ela se sentia uma professora frustrada. “Na verdade, o que eu tentei dizer é que queria dar aula para quem gostasse de aprender”, diz.
E de gostar de aprender ela sempre gostou. Tanto que, quando o professor de topologia da UFU, Viktor Bojaczuk, voltou de uma viagem à Polônia com um computador portátil Apple em mãos e perguntou aos alunos quem desejava se aprofundar em uma nova área do conhecimento, ela topou de imediato. “Era 1985 e a gente não tinha acesso ao computador, ele ficava fechado em uma sala e quem mexia na máquina era um operador. Nas aulas de programação, nós escrevíamos os códigos em uma folha verde e mandávamos para o operador, rezando para que ele entendesse o que a gente tinha escrito e que a máquina executasse aqueles comandos de forma correta até o final do semestre”, recorda-se Solange.
Então, quando ela viu pela primeira a oportunidade de mexer diretamente em um computador portátil, não pensou duas vezes. Solange ouviu a palavra inteligência artificial pela primeira vez na aula de Bojarkuzc, que anunciou profeticamente: “Estou aprendendo a programar com uma linguagem diferente, que é totalmente lógica e tem tudo a ver com matemática. Mas é algo muito maior, que vai estar presente na vida de todo mundo no futuro, a inteligência artificial”.
A tal linguagem de programação é ensinada até hoje no início das disciplinas de inteligência artificial, chama-se Prolog. Depois que teve acesso a programar diretamente no computador usando Prolog, Solange sabia que seu destino não estava mais atrelado à matemática pura, o que ela queria era computação: “O professor Bojaczuk mudou o rumo da minha vida”. Dois outros professores, Sergio Schneider e Costa Pereira, falaram para a garota sobre a USP, em São Carlos, dizendo que lá havia uma professora que atuava na área de inteligência artificial: Carolina Monard.
Assim que se formou, Solange viajou para São Carlos e conheceu Carolina. Começou a fazer mestrado em Ciências de Computação e Matemática Computacional no ICMC em 1987. Quatro anos depois, quando estava no primeiro ano do doutorado em Engenharia Mecânica, na Escola de Engenharia de São Carlos (EESC), prestou um concurso para se tornar professora no ICMC, onde está até hoje.
Além de ministrar aulas e realizar pesquisas na área de inteligência artificial, Solange também ensina empreendedorismo. Aliás, ela foi uma das responsáveis, junto com o professor André de Carvalho, também do ICMC, por inserir a temática do empreendedorismo nos cursos de computação do Instituto. Sob sua orientação estão sete doutorandos, três mestrandos, quatro alunos de iniciação científica e um pós-doutorando. Nas quintas à tarde, ela atua como consultora em uma startup são-carlense chamada Itera. Ainda sobra fôlego para o Amor em Gotas e para coordenar o festival de divulgação científica Pint of Science em São Carlos, que acontecerá dias 14, 15 e 16 de maio, juntamente com outras 55 cidades brasileiras e mais 20 países do mundo. “Sou uma apaixonada pela vida e pela possibilidade de ajudar as pessoas que desejam entrar em movimento para buscar seus sonhos”, diz.
Ao relatar sua história, Solange dá indícios de onde nasce a motivação para o seu fazer. Entre os ensinamentos do pai, seu Amador, falecido há sete anos, uma frase se destaca na memória: “Filha, a vida inteira você tem que cuidar para que o brilho dos seus olhos nunca se apague”. Talvez esse seja o segredo de Solange: manter-se antenada com o que faz os olhos brilharem.
Encontro no fim de 2017 na casa de Solange: confraternização reuniu alunos do Laboratório de Inteligência Computacional do ICMC e seus familiares |
Texto: Denise Casatti – Assessoria de Comunicação do ICMC/USP
Mais informações
Pint of Science São Carlos: https://pintofscience.com.br/events/saocarlos
Laboratório de Inteligência Computacional do ICMC: http://labic.icmc.usp.br
Assessoria de Comunicação do ICMC: (16) 3373.9666
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