Na busca pelo sonho de fazer mestrado, um peruano encontrou uma segunda casa no Brasil e hoje ajuda a construir um plano nacional de infraestrutura de hardware e software para o governo do Peru
Para Ernesto, o ICMC é o ponto inicial de toda a mudança que aconteceu na área de computação no Peru |
É dia 31 de dezembro, 21h30. A expectativa para a chegada do Ano Novo toma conta da cidade de São Carlos. Nos corredores vazios do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, um peruano chega com um sonho: fazer mestrado em computação. Depois de quatro dias viajando de ônibus e no trem da morte na Bolívia, ele está exausto e feliz a um só tempo. Concluiu a jornada, apesar de todas as dificuldades que encontrou pelo caminho, mesmo não compreendendo em que poltrona devia se sentar ao olhar para o primeiro bilhete de ônibus que comprou quando cruzou a fronteira com o Brasil, escrito em português, língua que não dominava.
O curso de verão no qual estava matriculado começava dia 2 de janeiro e Ernesto Cuadros-Vargas não fazia ideia do tempo que levaria para chegar à USP em São Carlos saindo de Arequipa, no Peru. Aliás, ele acreditava que o campus ficava em São Paulo e não no interior, a cerca de 230 quilômetros da capital do Estado. Por isso, passou o Natal com a família e embarcou em sua primeira ida ao Brasil no dia 27 de dezembro de 1995.
Naquela noite de Réveillon, quando saiu da rodoviária e pegou o táxi para o levar até a portaria principal da Universidade, não imaginava que começaria a ser desenhada ali uma história que iria impactar a vida de centenas de outros garotos peruanos. Um segurança do bloco E1 da USP lhe deu boas vindas e explicou como chegava ao ICMC, onde também só havia outro segurança. Com o carro que faz rondas na Universidade, ele deu uma carona para Ernesto e percorreram juntos os alojamentos do campus atrás de um colchão para acomodar o corpo cansado do jovem, que trazia consigo apenas US$ 400 e não queria ir para um hotel, pois sairia muito caro. Depois de encontrar o tal colchão, foi improvisado um quarto para o futuro estudante na sala de estudos da Biblioteca Achille Bassi. “Quando você está viajando quatro dias sem hotel e sem parar, aquilo é uma maravilha de colchão”, lembra Ernesto, que já percorreu o caminho entre Arequipa e São Carlos, por terra, 36 vezes.
No dia seguinte, ao acordar, havia um sol maravilhoso e tudo brilhava. No dia 2 de janeiro, mais estudantes começaram a chegar ao Instituto e o curso teve início. Na primeira aula – Estrutura de Dados, com a professora Sandra Aluísio – ele já sentiu que havia tomado a decisão certa, embora ainda não conseguisse avaliar o impacto que isso teria em sua vida. “Nessa primeira aula do curso, eu aprendi mais do que tudo que haviam me ensinado sobre estrutura de dados na minha graduação no Peru”, revela.
A notícia de que tinha a oportunidade de fazer um curso de verão no ICMC e, depois, ingressar no mestrado, chegou a Ernesto por intermédio de um colega que trabalhava junto com ele em um instituto de informática, onde estavam desenvolvendo o projeto de um buscador de textos similar ao Google. O colega recebeu um e-mail de um rapaz peruano que estudava Ciências de Computação no Brasil. Como o amigo sabia que Ernesto tinha planos de estudar fora, encaminhou o e-mail a ele. Ao mesmo tempo, Ernesto sempre se lembrava de seu professor Wilber Ramos, que encoraja os estudantes a estudarem no exterior e a voltarem ao Peru. O professor também tinha um irmão que estudava na USP e recomendava a instituição.
Depois de tirar boas notas no curso de verão, Ernesto conseguiu um orientador, o professor André de Carvalho, mas teve problemas com o visto (que não tinha) e precisou voltar ao Peru para acertar a documentação antes de começar o mestrado. “Cheguei super feliz em Arequipa e voltei ao Brasil em agosto de 1996. Sentia que era algo fantástico que estava acontecendo comigo, eu nunca havia tido uma oportunidade como aquela”, destaca o pesquisador.
Para ele, estudar no ICMC foi uma das coisas mais importantes que aconteceu em sua vida: “É o lugar onde eu aprendi computação, é minha referência. Eu viajo muito, vou para muitos países, mas no Brasil eu sinto que continuo em casa”. Ernesto concluiu o mestrado em 1998 e já ingressou no doutorado, também no ICMC, que concluiu em 2004. No doutorado, foi orientado pela professora Roseli Romero, que também o apoiou muito. A experiência foi tão positiva que, logo depois, o irmão de Ernesto, Alex Cuardos-Vargas, veio ao Brasil e também fez mestrado, doutorado e pós-doutorado no Programa de Ciências de Computação e Matemática Computacional do ICMC.
Ao retornar ao Peru, em 2004, Ernesto tornou-se professor na Universidade Católica San Pablo (UCSP), onde criou e coordenou o curso de Ciências de Computação até este ano: “A UCSP é hoje reconhecida como a melhor universidade de computação do Peru. A maioria dos professores tem mestrado ou doutorado fora do país. Nada disso poderia ter sido feito sem aquela experiência no ICMC, o ponto inicial de toda a mudança na área de computação que aconteceu no Peru." E completa: "Agora posso dizer que mudamos a vida de muitas centenas de garotos e que estamos caminhando para sermos um país mais desenvolvido em termos de computação".
Nesse momento, Ernesto está embarcando em uma nova jornada. Ele está trabalhando na Universidade de Engenharia e Tecnologia (UTEC), em Lima, e também junto com o presidente do Peru, Pedro Pablo Kuczynski Godard, na construção de um plano nacional de infraestrutura de hardware e software para o governo do país. O objetivo é propiciar que todos os dados referentes aos serviços públicos oferecidos à população estejam disponíveis eletronicamente em tempo real e estejam conectados.
Os desafios que Ernesto tem pela frente não são poucos, será preciso criar centros de dados gigantes para armazenar todas as informações captadas bem como desenvolver novos sistemas. Mas ninguém duvida de que ele conseguirá. “Todos os problemas que tive e as dificuldades que enfrentei me fizeram ficar mais forte. A experiência de vida que tudo isso trouxe é o mais importante, não é só a conquista do diploma de mestrado e doutorado, mas o contato com as pessoas”, finaliza.
Ernesto já percorreu o caminho entre Arequipa e São Carlos, por terra, 36 vezes
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Texto: Denise Casatti – Assessoria de Comunicação ICMC
Fotos: Arquivo pessoal
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